EX-FUMANTES LTDA.


Olá pessoal, vai aqui uma dica de livro.
Estava buscando nos meus PDF's um livro pra matar o tempo num fim de semana qualquer e me deparei com o livro SOMBRAS DA NOITE, de ninguém menos que STEPHEN KING, na minha humilde opinião, o Rei do Suspense, na verdade é um compacto de várias micro-histórias de suspense e tem mais menos umas 300 páginas, mas aqui deixo a dica do conto EX-FUMANTES LTDA, um dos melhores contos do livro.

Ex-Fumantes Ltda: é um dos contos do livro Sombras da Noite, foi o primeiro livro de contos do americano Stephen King. É considerado por muitos a melhor coletânea de contos que King já escreveu. possui 20 contos, e muitos deles já foram adaptados para as telonas, incluindo As Crianças do Milharal que foi adaptado sob o nome de Colheita Maldita e já gerou 7 filmes.

PARA QUEM GOSTA DE LER UM BOM CONTO E TEM PELO MENOS MEIA HORA VAGA NO FIM DE UM DIA DE TRABALHO, VALE A PENA.

SINOPSE: Tentando largar o vício, e com a sugestão de um amigo, um homem resolve ingressar num estranho programa para parar de fumar. Os métodos são simples, se ele fumar, será torturado, se repetir, será a vez da esposa, e se continuar as coisas vão piorar. O homem não vê escapatória, o vício nunca foi tão terrível.

Vale a pena ler, é um conto bem curtinho de umas 20 folhos mais ou menos, em meia hora eu já tinha lido todo e realmente é fascinante.

Confira na íntegra:




EX FUMANTES LTDA.  


Morrison esperava por alguém que estava retido no engarrafamento de trafégo aéreo sobre o aeroporto internacional Kennedy quando avistou um rosto conhecido na outra extremidade do bar e foi até lá.

― Jimmy? Jimmy McCann? 

Era ele. Um pouco mais pesado do que quando Morrison o vira na Exposição de Atlanta, no ano anterior, mas, fora disso, parecendo em espantosa forma física. Na universidade, McCann fora um magro e pálido fumante inveterado, desses que acendem um cigarro na guimba do outro, com o rosto sumido atrás de um enorme par de óculos de aro de tartaruga. Aparentemente, mudara para lentes de contato.

― Dick Morrison? 

― Exato. Você está ótimo. 

Trocaram um aperto de mãos. 

― Você também ― disse McCann, mas Morrison sabia que era mentira. Vinha 
trabalhando demais, comendo demais, fumando demais. Que vai beber? 

― Bourbon com bitters ― respondeu Morrison, passando o pé em torno do 
tamborete do bar e acendendo um cigarro. ― Esperando alguém, Jimmy? 

― Não. Vou a Miami para uma conferência. Um grande cliente. Fatura seis milhões conosco. Devo ir segurar-lhe a mão porque perdemos um grande especial que será realizado na próxima primavera.

― Você ainda trabalha na Crager & Barton?

― Agora, sou vice-presidente executivo.

― Fantástico! Meus parabéns! Quando foi promovido?

Morrison costumava dizer com seus botões que o pequeno verme de inveja em seu estômago era apenas indigestão provocada pela acidez. Tirou do bolso um vidro de pastilhas antiácidas e colocou uma na boca, mastigando-a.

― Em agosto passado. Aconteceu algo que mudou minha vida ― disse McCann, olhando especulativamente para Morrison e bebericando seu drinque.

Talvez lhe interesse.

Meu Deus, pensou Morrison com uma careta mental, Jimmy McCann virou religioso.

― Claro ― respondeu, tomando um gole de seu drinque quando este foi trazido pelo barman.

― Eu não estava em muito boa forma ― disse McCann.

― Problemas pessoais com Sharon, meu pai tinha morrido ― ataque cardíaco ― e eu apanhara uma tosse renitente. Um dia, Bobby Crager entrou em minha sala e me fez uma pequena preleção paternal. Lembra-se delas?

― Claro ― replicou Morrison, que trabalhara na Crager & Barton durante dezoito anos, antes de ir para a Agência Morton.

― Engate uma marcha no traseiro ou caia fora daqui.  McCann riu:

― Vejo que se lembra. Bem, para encurtar a estória, o doutor disse que eu tinha uma úlcera. Mandou-me deixar de fumar ― McCann fez uma careta.

― Seria melhor mandar-me parar de respirar.

Morrison meneou a cabeça, demonstrando total compreensão. Os ex-fumantes podem dar-se o luxo de serem cheios de si. Olhou com repulsa para seu cigarro e o esmagou no cinzeiro, sabendo que acenderia outro dentro de cinco minutos.

― Você deixou? ― indagou.

― Deixei, sim. A princípio, julguei que não conseguiria ― volta e meia acendia um cigarro. Então, conheci um sujeito que me falou de uma organização na Rua Quarenta e Seis. Especialistas. Perguntei a mim mesmo o que tinha eu a perder e fui procurá-los. Desde então, nunca mais fumei.

Morrison arregalou os olhos.

― O que fizeram? Encheram você de alguma droga? 

― Não ― respondeu McCann, que tirara a carteira do bolso e procurava alguma coisa dentro dela.

― Aqui está. Eu sabia que ainda tinha um.

Colocou sobre o bar, entre ele e Morrison, um simples cartão de visitas branco.

EX-FUMANTES LTDA 
Pare de Sumir na Fumaça! 
Rua 46 ― Leste, n° 237 
Tratamentos Com Hora Marcada

― Fique com ele, se quiser ― disse McCann.

― Eles o curarão. É garantido. 

― Como? 

― Não posso dizer. 

― Hem? Por que não? 

― Faz parte do contrato que eles nos fazem assinar. De qualquer forma, dizem-lhe como funciona quando entrevistam o cliente. 

― Você assinou um contrato? 

McCann assentiu com a cabeça. 

― E baseado nele... 

― Sim ― disse McCann, sorrindo para Morrison. 
Este pensou: Bem, aconteceu mesmo. Jim McCann juntou-se aos bastardos cheios de si.

― Por que o segredo, se a tal organização é tão fantástica? Por que nunca vi 
comerciais na TV, cartazes, anúncios em revistas...

― De boca em boca, conseguem todos os clientes de que têm capacidade de tratar. 

― Você é um publicitário, Jimmy. Não pode acreditar nisso. 

― Acredito ― replicou McCann. ― Eles têm um percentual de cura de noventa e oito por cento. 

― Espere um segundo ― disse Morrison, fazendo sinal para pedir outro drinque e acendendo um cigarro.

― Essas caras amarram o cliente e o obrigam a fumar até ficar enjoado?  

― Não. 

― Dão-lhe alguma coisa que provoca vômitos cada vez que... 

― Não, não é nada disso. Vá e veja por si mesmo ― interrompeu McCann, 
apontando em seguida para o cigarro de Morrison:

― Você não gosta realmente disso, gosta?

― Não, mas... 

― Deixar de fumar realmente mudou as coisas para mim ― declarou McCann. 
― Não creio que aconteça o mesmo a todo mundo, mas, comigo, foi como derrubar uma fileira de pedras de dominó. Senti-me melhor, meu relacionamento com Sharon se acertou. Passei a ter mais energia e meu desempenho no trabalho foi melhor.

― Ouça, você me despertou a curiosidade. Não pode ao menos... 

― Sinto muito, Dick. Não posso mesmo falar no assunto. 

O tom de McCann foi firme, decidido. 

― Ganhou peso? 

Por um instante, Morrison teve a impressão de que Jimmy McCann se tornara inflexível. 

― Sim. Na verdade, um pouco demais. Mas tornei a perder. No momento, estou quase no peso ideal. Antes, era esquelético. 

O alto-falante anunciou: 


― Voo 206 embarcando agora no Portão 9. 

― É o meu vôo ― disse McCann, levantando-se e deixando uma nota de cinco dólares em cima do balcão.

― Tome outro, se quiser. E pense no que eu lhe disse, Dick. No duro. Então, foi-se, abrindo caminho por entre as pessoas que se dirigiam às escadas rolantes.  Morrison pegou o cartão de visitas, fitou-o pensativamente, guardou-o na carteira e esqueceu-o.

Um mês depois, o cartão lhe caiu da carteira em cima de outro bar. Ele saíra do escritório e viera ali para passar o resto da tarde bebendo. As coisas não iam muito bem na Agência Morton. Na verdade, as coisas estavam simplesmente horríveis. 
Deu a Henry uma nota de dez para pagar a bebida e depois pegou o cartão, tornando a lê-lo ― o número 237 da Rua Quarenta-e-Seis ficava apenas a dois quarteirões de distância; lá fora, um dia frio e ensolarado de outono. Talvez, só por brincadeira... Quando Henry trouxe o troco, ele terminou de beber o drinque e saiu para um passeio a pé.
A Ex-Fumantes Ltda. ficava num edifício novo onde o aluguel mensal dos escritórios devia aproximar-se do salário anual de Morrison. Pelo quadro indicador no vestíbulo, Morrison teve a impressão de que a organização ocupava um andar inteiro, o que significava dinheiro ― e muito. 
Tomou o elevador e saltou num saguão luxuosamente atapetado, passando dali para uma sala de recepção graciosamente decorada, com um janelão que dava para a rua, onde as pessoas pareciam insetos apressados. Três homens e uma mulher estavam sentados em poltronas ao longo das paredes, lendo revistas. Típicos homens de negócios, todos eles.

Morrison foi à mesa da recepcionista.

― Um amigo me deu isto ― disse ele, entregando o cartão à recepcionista.

― Creio que ele é o que vocês chamariam de ex-aluno.  

Ela sorriu e colocou um formulário na máquina. 

― Seu nome, senhor? 

― Richard Morrison. Barulho de máquina. Mas um barulho muito leve; a máquina era uma IBM elétrica. 

― Endereço? 

― Maple Lane, vinte e nove. Clinton, Nova York. 

― Casado? 

― Sim. 

― Filhos? 

― Um. 

Morrison pensou em Alvin e franziu ligeiramente a testa. "Um" era a palavra errada. "Meio" talvez fosse melhor. Seu filho era retardado mental e vivia numa escola para excepcionais, em Nova Jersey.

― Quem nos recomendou ao senhor? 

― Um antigo colega de escola, James McCann. 

― Muito bem. Quer sentar-se, por favor? Hoje temos muito movimento. 

― Tudo bem. 

Morrison sentou-se entre a mulher, que trajava um severo costume azul, e um jovem executivo que usava um paletó listrado e costeletas compridas, como era moda. Tirou do bolso o maço de cigarros, olhou em volta e percebeu que não havia cinzeiros.  
Tornou a guardar os cigarros. Não fazia diferença. Ele terminaria aquele joguinho e acenderia um cigarro ao sair. Talvez até mesmo derrubasse um pouco de cinza no luxuoso tapete marrom, se o fizessem esperar muito. Pegou um exemplar do Time e começou a folheá-lo. 
Foi chamado quinze minutos mais tarde, após a mulher de costume azul. Seu centro consumidor de nicotina reclamava em altos brados, agora. Um homem que chegara depois dele tirou do bolso uma cigarreira, abriu-a, percebeu que não havia cinzeiros, tornou a guardá-la ― com um leve ar de culpado, na impressão de Morrison. Isto o fez sentir-se melhor.  

Finalmente, a recepcionista lançou-lhe um sorriso brilhante e disse: 

― Pode entrar Sr. Morrison. 

Morrison passou pela porta situada além da mesa da recepcionista e viu-se num corredor com iluminação indireta. Um homem corpulento com cabelos brancos que pareciam postiços apertou-lhe a mão, sorriu amavelmente e disse:

― Acompanhe-me, Sr. Morrison. 

Passou com Morrison por uma série de portas fechadas que não tinham qualquer indicação ou marca e, depois, abriu uma delas, mais ou menos no meio do corredor, com uma chave que tirou do bolso. Atrás da porta existia uma salinha austera, forrada com painéis de cortiça brancos e cheios de furos. A única mobília consistia de uma mesa com uma cadeira de cada lado. Na parede atrás da mesa havia o que parecia ser uma pequena janela oblonga, mas estava tapada com uma curta cortina verde. Na parede à esquerda de
Morrison estava a fotografia de um homem alto, com cabelos grisalhos, tendo uma folha de papel numa das mãos. Parecia vagamente familiar.

― Sou Vic Donati ― disse o homem corpulento.

― Se o senhor decidir cumprir nosso programa, serei o encarregado de seu caso.

― Muito prazer em conhecê-lo ― replicou Morrison, ávido por acender um cigarro.

― Sente-se. 

Donati colocou em cima da mesa o formulário preenchido pela recepcionista e depois retirou outro formulário da gaveta da mesa. Fitou diretamente os olhos de Morrison.

― Quer deixar de fumar?

Morrison pigarreou, cruzou as pernas e tentou imaginar um meio de iludir. Não conseguiu.

― Sim ― respondeu. 

― Quer assinar isto? 

Donati entregou a Morrison o formulário. Morrison leu rapidamente. O abaixo assinado compromete-se a não divulgar os métodos ou técnicas, etc., etc. 

― Claro ― disse ele. 

Donati entregou-lhe uma caneta. Morrison rabiscou seu nome e Donati assinou logo abaixo. Um momento depois, o papel desapareceu de volta à gaveta. Bem, pensou ironicamente Morrison, já fiz o juramento. Fizera-o anteriormente. Uma vez, duraram dois dias inteiros.

― Ótimo ― disse Donati.

― Aqui, não nos preocupamos com propaganda, Sr. Morrison. Nem questões de saúde, dinheiro, ou graças sociais. Não nos interessamos pelo motivo que o leva a querer deixar de fumar. Somos pragmáticos. 

― Ótimo ― disse Morrison em tom inexpressivo.

― Não empregamos drogas. Não utilizamos pessoas do tipo Dale Camegie para lhe fazer sermões. Não recomendamos dieta especial. E não aceitamos remuneração até que o senhor tenha deixado de fumar durante um ano.  

― Meu Deus ― disse Morrison. 

― O Sr. McCann não lhe disse isto? 

― Não. 

― A propósito, como vai o Sr. McCann? Está passando bem? 

― Está ótimo. 

― Maravilhoso. Excelente. Agora... apenas algumas perguntas, Sr. Morrison. São de caráter um tanto pessoal, mas asseguro-lhe que suas respostas serão mantidas no mais estrito segredo.  

― Sim? ― perguntou Morrison em tom neutro. 

― Qual é o nome de sua esposa? 

― Lucinda Morrison. Seu sobrenome de solteira era Ramsey. 

― O senhor a ama? 

Morrison ergueu vivamente os olhos, mas Donati o encarava impassivelmente. 

― Sim, naturalmente ― respondeu Morrison. 

― Alguma vez tiveram problemas matrimoniais? Uma separação, talvez? 

― O que tem isso a ver com deixar de fumar? ― indagou Morrison. Soou um pouco mais irritado do que desejava, mas queria... bem, necessitava.. de um cigarro. 

― Muita coisa ― respondeu Donati. ― Tenha paciência, por favor.

― Não. Nada desse tipo. ― Embora as coisas estivessem tensas ultimamente. 

― Têm um filho único? 

― Sim. Alvin. Está numa escola particular. 

― E qual é a escola? 

― Isso ― replicou Morrison, inflexível ― eu não vou dizer. 

― Muito bem ― disse Donati, compreensivo. ― Está sem fumar há uma hora, como se sente? 

― Bem ― mentiu Morrison. ― Muito bem. 

― Ótimo para o senhor! ― exclamou Donati. 

Levantou-se, contornou a mesa e abriu a porta. 

― Aproveite bem seus cigarros esta noite. A partir de amanhã, nunca mais voltará a fumar. 

― É mesmo? 

― Isso ― respondeu Donati com ar solene ― nós garantimos. 

No dia seguinte, às três horas em ponto, Morrison estava sentado na sala de espera da Ex-Fumantes Ltda. Passara a maior parte do dia oscilando entre faltar à consulta que a recepcionista marcara para ele na véspera, por ocasião da saída, ou comparecer com um espírito de teimosa colaboração: Atire a bola para mim, moço! Faça seu melhor sermão!  
No final, algo que Jimmy McCann dissera convenceu-o a comparecer: Mudou toda a minha vida. Só Deus sabia o quanto sua vida precisava de algumas mudanças. Além disso, havia a sua curiosidade. Antes de tomar o elevador, ele fumou um cigarro até o filtro. Pior se fosse o último, refletiu ele. Tinha um gosto horrível. Desta vez, a espera foi curta. Quando a recepcionista o mandou entrar, Donati estava aguardando. Estendeu a mão e sorriu. Para Morrison, o sorriso pareceu quase predatório. Começou a sentir-se um pouco tenso e isto fê-lo desejar um cigarro. 

― Venha comigo ― disse Donati. 

E foi na frente à pequena sala. Sentou-se novamente à mesa e Morrison ocupou a outra cadeira.

― Fico muito satisfeito porque o senhor veio ― disse Donati. Muitos dos clientes em perspectiva nunca mais aparecem após a primeira entrevista. Descobrem que não querem tanto abandonar o vício quanto imaginavam antes. Será um prazer trabalhar com o senhor.  

― Quando começa o tratamento? 

Hipnose, pensava Morrison, deve ser hipnose. 

― Oh, já começou. Teve início quando apertamos as mãos no corredor. Tem cigarros consigo, Sr. Morrison? 

― Sim. 

― Pode entregá-los a mim, por favor? 

Sacudindo os ombros, Morrison entregou a Donati o maço de cigarros. De qualquer maneira, restavam apenas dois ou três cigarros. Donati colocou o maço em cima da mesa. Então, sorrindo para os olhos de Morrison cerrou a mão direita num punho e começou a martelá-la no maço de cigarros, que se achatou e amarrotou todo. Uma ponta de cigarro partido voou longe. Pedaços de fumo se espalharam pela mesa. O som dos murros de Donati soava muito alto na sala fechada. O sorriso continuava no rosto de Donati, apesar da força dos golpes, e Morrison sentiu um arrepio. Provavelmente, era exatamente esse efeito que eles desejavam inspirar. Afinal, Donati cessou de esmurrar. Pegou o maço, um destroço retorcido e amassado.  

― O senhor nem imagina o prazer que isto me dá ― disse ele, deixando cair o maço na cesta de papéis usados.

― Mesmo depois de três anos nesta profissão, ainda me dá prazer.  

― Como tratamento, deixa alguma coisa a desejar ― disse Morrison suavemente.

― Existe uma banca de jornal no vestíbulo deste próprio edifício. Lá, vendem-se todas as marcas de cigarros.  

― Como queira. 

Donati cruzou as mãos, acrescentando: 

― Seu filho, Alvin Dawes Morrison, está na Escola Paterson Para Crianças 
Excepcionais. Nasceu com danos cranianos no cérebro. QI testado de 46. Não exatamente na categoria de retardados educáveis. Sua esposa...  

― Como descobriu isso? ― bradou Morrison, espantado e furioso. Não tem o direito de intrometer-se em minha...  

― Sabemos muito a seu respeito ― interpôs Donati tranqüilamente.

― Mas, como eu disse, tudo ficará no mais estrito segredo.
― Vou-me embora daqui ― declarou Morrison com voz tensa. 

Levantou-se. 

― Fique mais um pouco. 

Morrison estudou-o atentamente. Donati não se perturbara. Na verdade, parecia um pouco divertido. O rosto de um homem que vira aquela cena dezenas ― talvez centenas ― de vezes.

― Está bem. Mas acho melhor ser algo muito bom. 

― Oh, é ― disse Donati, recostando-se na cadeira. ― Eu lhe disse que, aqui, éramos pragmáticos. Na qualidade de pragmáticos, temos que começar por compreender o quanto é difícil curar o vício do tabagismo. A proporção de recaídas é de oitenta e cinco por cento. A proporção de recaídas dos viciados em heroína é inferior a isso. Um problema extraordinário. Extraordinário.  Morrison olhou para a cesta de papéis. Um dos cigarros, embora torto, ainda parecia fumável. Donati riu, bem-humorado, enfiou a mão na cesta e esmagou o cigarro entre os dedos.

― Ocasionalmente, os legislativos estaduais recebem a sugestão de que seja abolida ração semanal de cigarros para os detentos. Tais propostas são invariavelmente recusadas. Nos poucos casos em que foram aprovadas, ocorreram ferozes motins nas prisões. Motins, Sr. Morrison. Imagine. 

― Não me surpreendo ― comentou Morrison. 

― Todavia, considere as implicações. Quando colocamos um homem na prisão, tiramos-lhe qualquer vida sexual normal, tiramos-lhe a bebida alcoólica, a política, a liberdade de movimentos. Nenhum motim ― ou muito poucos, em comparação com o número de prisões. Mas quando lhe tiramos o cigarro... bum! bum! 

Esmurrou a mesa para dar ênfase às palavras. 

― Durante a Primeira Guerra Mundial, quando ninguém na retaguarda alemã conseguia cigarros, a cena de aristocratas alemães catando guimbas nas sarjetas era muito comum. Durante a Segunda Guerra Mundial, muitas mulheres americanas passaram a fumar cachimbo quando não conseguiam obter cigarros. Um problema fascinante para o verdadeiro pragmático, Sr. Morrison.

― Podemos passar ao tratamento? 

― Num momento. Venha cá, por favor. 

Donati levantou-se e andou até a cortina verde que Morrison notara na véspera. Abriu a cortina, deixando à mostra uma janela retangular que dava para uma sala vazia.
Não, não exatamente vazia. Havia um coelho no chão, comendo pelotas de ração numa tigela.

― Belo coelhinho ― comentou Morrison. 

― Certamente. Observe-o.

Donati apertou um botão ao lado da esquadria da janela. O coelho parou de comer e começou a saltar loucamente pela sala. Dava a impressão de pular mais alto cada vez que suas patas tocavam o chão. O pêlo se eriçava em todas as direções. Os olhos estavam desvairados.

― Pára com isso! Vai eletrocutá-lo! 

Donati largou o botão. 

― Longe disso. A corrente no chão é ínfima. Observe o coelho, Sr. Morrison! 

O coelho estava encolhido a cerca de três metros da tigela de ração. Mexia o nariz. De repente, fugiu para um canto. 

― Se o coelho levar choques com bastante freqüência enquanto estiver comendo, estabelece muito depressa uma associação ― disse Donati.

― Comer causa sofrimento; portanto, ele não come. Mais alguns choques e o coelho morrerá de fome em frente à tigela de comida. Chama-se tratamento por aversão.

A luz se fez no cérebro de Morrison. 

― Não, obrigado ― disse ele, encaminhando-se para a porta. 

― Espere, por favor, Sr. Morrison. 

Morrison não se deteve. Pegou a maçaneta... e sentiu-a imóvel sob o movimento giratório de sua mão. 

― Destranque isto. 

― Sr. Morrison, se ao menos o senhor se sentar... 

― Destranque isto ou lançarei a polícia sobre vocês antes que consigam piscar um olho.

― Sente-se. A voz era fria como gelo. 

Morrison olhou para Donati, cujos olhos castanhos eram sombrios e assustadores. Meu Deus, pensou ele, estou trancado aqui dentro com um psicopata! Umedeceu os lábios. Mais que nunca em sua vida, desejava um cigarro.

― Permita-me explicar o tratamento em maiores detalhes ― disse Donati.

― Você não entende ― replicou Morrison com fingida paciência. Não quero o tratamento. Decidi-me contra ele. 

― Não, senhor Morrison. É o senhor que não compreende. Não tem escolha. 
Quando eu lhe disse que o tratamento já começara, falei literalmente a verdade. Julguei que o senhor já tivesse percebido, a esta altura.  

― Você é louco ― disse Morrison, atônito. 

― Não. Apenas um pragmático. Deixe-me contar tudo a respeito do tratamento. 

― Claro ― replicou Morrison. ― Desde que fique bem entendido que tão logo eu sair daqui comprarei cinco maços de cigarros e os fumarei todos a caminho da delegacia de polícia. De repente, percebeu que roia a unha do polegar, chupando o dedo, e obrigou-se a parar.  

― Como queira. Mas creio que mudará de ideia quando conhecer o panorama geral. 

Morrison não replicou. Tornou a sentar-se e cruzou as mãos. 

― Durante o primeiro mês do tratamento, nossos agentes manterão o senhor sob constante supervisão ― disse Donati.

― O senhor talvez consiga perceber alguns deles.
Não todos. Mas estarão sempre com o senhor. Sempre que eles virem o senhor fumar um cigarro, receberei um telefonema.

― E suponho que me trará para cá e fará o velho truque do coelho ― disse
Morrison.

Tentou parecer frio e sarcástico, mas, de repente, sentiu-se horrivelmente amedrontado. Aquilo era um pesadelo.

― Oh, não ― respondeu Donati.

― Sua esposa receberá o tratamento do coelho, não o senhor.

Morrison fitou-o, emudecido.

Donati sorriu, concluindo:

― O senhor assistirá.

Depois que Donati o deixou sair, Morrison andou durante duas horas, completamente atordoado. Outro dia bonito, mas ele nem percebeu. A monstruosidade do rosto sorridente de Donati apagava tudo o mais.  

― Veja ― dissera Donati. ― Um problema pragmático exige soluções pragmáticas. O senhor deve entender que, no fundo, zelamos por seus melhores interesses.  
Segundo Donati, a Ex-Fumantes Ltda. era uma espécie de fundação ― uma organização sem finalidades lucrativas, fundada pelo homem cujo retrato estava na parede da sala. O cavalheiro fora extremamente bem sucedido em vários negócios da família ― inclusive máquinas caça-níqueis, estabelecimentos de massagens, jogo do bicho e um ativo (embora clandestino) comércio entre Nova York e a Turquia. Mort "Três Dedos" Minelli fora um fumante inveterado ― na faixa dos três maços por dia. O papel que ele segurava no retrato era um diagnóstico médico: câncer do pulmão. Mort morrera em 1970, após dotar fundos da família à Ex-Fumantes Ltda.

― Tentamos da melhor maneira possível equilibrar a despesa com a receita ― disse Donati.

― Mas estamos mais interessados em ajudar nossos semelhantes. E, naturalmente, existe uma importante questão de isenção de impostos.  

O tratamento era horripilantemente simples. Na primeira infração, Cindy seriatrazida ao que Donati chamava de "sala do coelho". Na segunda infração, Morrison receberia a mesma dose. Na terceira, ambos seriam trazidos juntos. A quarta infração revelaria graves problemas de cooperação e exigiria medidas mais drásticas: um agente seria enviado à escola de Alvin para surrá-lo.  

― Imagine ― disse Donati, sorrindo. ― Imagine como seria horrível para o garoto. Ele não entenderia mesmo que alguém tentasse explicar. Só saberia que alguém o estava machucando porque o papai é mau. Ficaria deveras assustado.

― Bastardo ― disse Morrison, impotente, sentindo-se à beira das lágrimas.
― Seu bastardo sujo, imundo.  

― Não me entenda mal ― replicou Donati com um sorriso compreensivo.
―Tenho certeza de que isso não acontecerá. Quarenta por cento de nossos clientes nunca necessitaram de penas disciplinares ― e apenas dez por cento cometeram mais que três transgressões. São números tranqüilizantes, não acha?

Morrison não os achava tranqüilizantes; achava-os aterradores. 

― Naturalmente, se o senhor transgredir uma quinta vez... 

― Que quer dizer com isso? 

Donati sorriu abertamente.

― A sala para o senhor e sua esposa, uma segunda surra em seu filho, além de uma surra na mulher. 
Morrison, impelido além dos limites do pensamento racional, atirou-se por cima da mesa contra Donati. Este, movendo-se com rapidez espantosa num homem que aparentemente estava relaxado, empurrou a cadeira para trás e golpeou com ambos os pés por cima da mesa, atingindo a barriga de Morrison. Engasgando-se e tossindo, Morrison recuou cambaleante.  

― Sente-se, Sr. Morrison ― disse Donati com ar benigno. ― Vamos conversar sobre o assunto como duas pessoas racionais.  

Quando conseguiu recuperar o fôlego, Morrison fez o que o outro ordenara. Os pesadelos têm hora de acabar, não é mesmo?  
Donati prosseguiu as explicações, dizendo que a Ex-Fumantes Ltda. funcionava numa escala de punição de dez etapas. As etapas seis, sete e oito consistiam de novas idas à sala do coelho (com gradativo aumento da voltagem) e surras mais severas. A nona etapa seria quebrar os dois braços do filho de Morrison.  

― E a última? ― quis saber Morrison, com a boca seca. 

Donati sacudiu tristemente a cabeça. 

― Então, desistimos, Sr. Morrison. O senhor passará a fazer parte dos dois por cento de irrecuperáveis.

― Desistem, realmente? 

― Por assim dizer. 

Donati abriu uma das gavetas e colocou sobre a mesa uma pistola calibre 45 munida de silenciador. Então, sorriu para os olhos de Morrison. 

― Todavia, mesmo os dois por cento de irrecuperáveis nunca mais voltam a fumar.  Isso nós garantimos. 

O filme da noite de sexta-feira foi Bullit, um dos prediletos de Cindy, mas após uma hora de Morrison resmungar e remexer-se inquieto, ela perdeu a concentração no filme. 

― O que há com você? ― quis saber ela durante o intervalo comercial. 

― Nada... tudo ― grunhiu ele. ― Estou deixando de filmar. 

Ela riu. 

― Desde quando? Desde cinco minutos atrás? 

― Desde as três horas desta tarde. 

― Então, você realmente não fumou um único cigarro a partir dessa hora?  ― Não ― replicou ele, começando a roer a unha do polegar, que já estava roída até o sabugo.

― Que maravilha! E por que se decidiu a deixar de fumar? 

― Por causa de você ― disse ele. ― E... e de Alvin. 

Ela arregalou os olhos e, quando o filme recomeçou, nem se deu conta da TV. Dick raramente falava no filho retardado. Cindy se aproximou e olhou para o cinzeiro vazio junto à mão dele. Depois, fitou-o nos olhos.  

― Está mesmo tentando deixar de fumar, Dick? 

― No duro. 
E acrescentou mentalmente: se eu procurar a polícia, os bandidos locais virão estragar seu rosto, Cindy. 

― Fico muito feliz. Mesmo que não consiga deixar, nós dois lhe agradecemos pela intenção, Dick.

― Oh, creio que conseguirei ― disse ele, pensando na expressão sombria e homicida que surgira nos olhos de Donati quando este lhe metera os pés no estômago. Dormiu mal naquela noite, acordando repetidamente. Por volta das três horas, despertou por completo. Seu anseio por um cigarro era como um estado febril. Desceu e foi ao escritório. A sala ficava situada no centro da casa. Sem janelas. Abriu a gaveta de cima
da mesa de trabalho e olhou para dentro dela, fascinado pela caixa de cigarros. Olhou em volta e umedeceu os lábios.  
Supervisão constante durante o primeiro mês, dissera Donati. Dezoito horas por dia nos dois meses seguintes ― mas ele jamais saberia quais dezoito horas. Durante o quarto mês, o período em que a maioria dos clientes fraquejava, a vigilância voltaria a ser de vinte e quatro horas. Depois disso, doze horas intercaladas de vigilância, todos os dias, pelo resto do ano. Depois? Vigilância ocasional pelo resto da vida do cliente.  Pelo resto da vida.

― Podemos verificá-lo de dois em dois meses ― disse Donati. ― Ou dia sim, dia não. Ou constantemente, durante uma semana, daqui a dois anos. O que interessa é: o senhor nunca saberá. Se fumar, estará arriscando a sorte com dados chumbados. Estarão vigiando? Estarão pegando minha mulher ou mandando um homem espancar meu filho, neste momento?  
Lindo, não acha? E se o senhor acender um cigarro às escondidas, ele terá um gosto horrível. Terá o gosto do sangue de seu filho.  
Mas não poderiam estar a observá-lo agora, na calada da noite, em seu próprio escritório. A casa estava silenciosa como um túmulo.  
Morrison fitou os cigarros na caixa durante quase dois minutos, incapaz de desviar os olhos. Então, foi à porta do escritório, espiou para o corredor vazio e voltou para olhar um pouco mais os cigarros. Uma cena horrível lhe veio à mente: a vida se estendendo à sua frente e nem mesmo um único cigarro à vista. Como, em nome de Deus, poderia fazer uma boa apresentação de campanha a um cliente recalcitrante sem um cigarro queimando displicentemente entre os dedos enquanto ele apontava para gráficos e layouts? Como poderia enfrentar as intermináveis exposições de jardinagem de Cindy sem um cigarro?
Como seria até mesmo capaz de levantar-se pela manhã e encarar o dia sem um cigarro para fumar durante o café da manhã, enquanto lia o jornal?  
Amaldiçoou-se por ter-se metido naquilo. Amaldiçoou Donati. E, acima de tudo, amaldiçoou Jimmy McCarnn. Como fora capaz de fazer tal coisa? O filho da puta sabia. 
As mãos de Morrison na ânsia de agarrarem o pescoço de Jimmy Judas McCann. 
Furtivamente, olhou mais uma vez em redor de si, passando uma revista no escritório. 
Enfiou a mão na gaveta e pegou um cigarro. Acariciou-o, mimou-o. Como eramesmo aquele slogan? Tão redondo, tão firme, tão compacto.. Jamais alguém pronunciara palavras tão verdadeiras. Colocou o cigarro nos lábios e ficou imóvel, inclinando a cabeça para o lado.  
Escutara um leve barulho no armário embutido? Um ligeiro roçar? Claro que não. 
Mas... 
Outra imagem mental: aquele coelho pulando loucamente sob a ação da eletricidade. A idéia de Cindy naquela sala... 
Aguçou desesperadamente o ouvido e nada escutou. Disse com seus botões que a única coisa que tinha a fazer era ir até o armário e escancarar a porta. Mas tinha demasiado temor do que poderia encontrar lá dentro. Voltou para a cama, mas não conseguiu dormir durante longo tempo.  
A despeito da indisposição que sentia pela manhã, o café da manhã estava gostoso. 
Após uma hesitação momentânea, ele acompanhou o costumeiro prato de mingau de milho por ovos mexidos. Estava lavando a frigideira, dominado pelo mau-humor, quando Cindy desceu, ainda usando um roupão.  

― Richard Morrison! Você não come ovos no café da manhã desde que Hector era um filhotinho!  
Morrison grunhiu. Considerava desde que Hector era um filhotinho uma das frases mais estúpidas de Cindy, fazendo par com eu devia sorrir e beijar um porco.  

― Já fumou? ― indagou ela, servindo-se de suco de laranja. 
― Não. 
― Voltará a fumar antes do meio-dia ― proclamou ela. 
― Você ajuda muito! ― bradou Morrison, voltando-se repentinamente para a mulher. ― Você e qualquer pessoa que não fume acham que... Ora, não importa. 
Esperava que Cindy se irritasse, mas ela o fitava como se estivesse maravilhada. 

― Você está falando sério! ― comentou a mulher. ― No duro. 

― Pode apostar. Você jamais poderá imaginar o quanto estou falando sério. Ao menos, é o que espero.

― Pobrezinho ― disse Cindy, aproximando-se dele. ― Parece um morto-vivo. Mas sinto-me orgulhosa. 

Morrison abraçou-a com força. 

Cenas da vida de Richard Morrison, outubro-novembro. 

Morrison e um amigo dos Estúdios Larkin no bar de Jack Dempsey. O amigo oferece um cigarro e Morrison aperta o copo com mais força, dizendo: Estou deixando de fumar. O amigo ri e diz: Dou-lhe uma semana, no mínimo.  
Morrison esperando pelo trem matutino, olhando por cima do Times para um jovem de terno azul. Atualmente, vê aquele jovem quase todas as manhãs e, às vezes, em outros lugares. No Onde's, quando se encontrou com um cliente. Olhando para os 45 na Sam
Goody's, onde Morrison foi procurar um disco de Sam Cooke. Certa vez, num grupo de jogadores de golfe na mesa atrás de Morrison, no campo de golfe local.  
Morrison embebedando-se numa festa e desejando fumar um cigarro ― mas não suficientemente embriagado para fumar.  
Morrison visitando o filho, levando-lhe uma bola enorme, que emite um grito quando é apertada. O filho babando, dando-lhe um beijo de satisfação. De algum modo, não é tão repugnante como antes. Morrison abraçando o filho com força, compreendendo o que Donati e seus amigos haviam tão cinicamente percebido antes dele: o amor é o mais pernicioso de todos os tóxicos. Os românticos que discutam sua existência. Os pragmáticos
o aceitam e fazem uso dele.  
Morrison perdendo paulatinamente a compulsão física de fumar, mas nunca se libertando totalmente do anseio psicológico ou da necessidade de ter algo na boca ― pastilhas para tosse, balas, um palito. Substitutos inadequados, todos eles.  
E, finalmente, Morrison retido num colossal engarrafamento no Túnel Midtown. 
Escuridão. Buzinas estridentes. Ar poluído. Tráfego irremediavelmente engarrafado. 
E, de repente, abrindo o porta-luvas e vendo o maço de cigarros aberto ali dentro. 
Morrison olhou para os cigarros, pegou um deles e acendeu-o com o isqueiro do painel do automóvel. Se acontecer alguma coisa, a culpa é de Cindy, disse ele consigo, com tom de desafio; eu bem lhe disse para dar sumiço em todos os cigarros...  
A primeira tragada fê-lo tossir fumaça desesperadamente. A segunda lhe provocou lágrimas nos olhos. A terceira deu-lhe uma sensação de tontura. Tem mesmo um gosto horrível, refletiu ele.  
E, logo a seguir: Meu Deus, o que estou fazendo? 
Buzinas impacientes soaram às suas costas. À frente, o tráfego começara a avançar lentamente. Morrison apagou o cigarro no cinzeiro do painel, abriu os dois vidros do carro, os dois quebra-ventos também, e depois abanou inutilmente o ar, como um menino que acaba de jogar na privada a ponta de seu primeiro cigarro fumado às escondidas.  

Acompanhando o vagaroso fluxo do tráfego, voltou para casa. 

― Cindy? ― chamou ele. ― Cheguei. 

Nenhuma resposta. 

― Cindy, onde está você, querida? 

O telefone tocou e Morrison correu para atendê-lo. 

― Alô, Sr. Morrison ― disse Donati, soando agradavelmente enérgico e direto. 
― Parece-me que temos um pequeno negócio a tratar. Às cinco horas seria conveniente para o senhor?  

― Está com minha mulher? 

― Sim, é claro ― respondeu Donati com uma risadinha indulgente. 

― Ouça: coloque-a em liberdade ― balbuciou Morrison. ― Não acontecerá outra vez. Foi um escorregão, apenas um escorregão. Só tirei três tragadas e... por Deus... tiveram um gosto horrível!  

― Que pena. Então, posso contar com o senhor às cinco horas? 

― Por favor ― disse Morrison, quase chorando. ― Por favor... 

Não adiantava falar a um telefone desligado. 

Às cinco da tarde, a sala da recepção estava vazia exceto pela presença da recepcionista, que exibiu um sorriso cintilante, ignorando a palidez e a aparência descabelada de Morrison.  

― Sr. Donati ― anunciou ela pelo interfone ―, o Sr. Morrison para falar com o senhor.

Donati estava à espera no lado de fora da porta sem marcas, com um homem que usava um suéter com a palavra SORRIA e portava um revólver calibre 38. Tinha a constituição de um macaco.  

― Escute ― disse Morrison a Donati. ― Podemos chegar a um acordo, não é?

Eu lhe pagarei. Eu...  

― Cala a boca ― disse o homem com o suéter SORRIA. 

― É um prazer revê-lo ― disse Donati. ― Pena que precise ser em circunstâncias tão adversas. Quer vir comigo? Tornaremos tudo o mais breve possível. Posso assegurar-lhe que sua esposa não se machucará... desta vez.  
Morrison retesou-se para saltar sobre Donati. 

― Ora, vamos ― disse Donati, parecendo aborrecido. ― Se fizer isso, Junk vai espancá-lo com o revólver e sua mulher continuará sofrendo a punição. O que ganhará o senhor com isso?  ― Espero que você queime no inferno ― disse Morrison a Donati. 

Donati suspirou. 

― Se eu tivesse um centavo por cada vez que alguém me disse isso, ou expressou sentimento semelhante, poderia aposentar-me. Que isto lhe sirva de lição, Sr. Morrison. Quando um romântico tenta fazer algo de bom e fracassa, é condecorado. Quando um pragmático obtém sucesso, desejam vê-lo no inferno. Vamos?  Junk gesticulou com o revólver. 

Morrison entrou na sala, precedendo-os. Sentia-se atordoado. A pequena cortina verde estava aberta. Junk cutucou-o com o cano da arma. Deve ser a mesma coisa que testemunhar uma execução na cadeira elétrica, pensou Morrison. Olhou pela janelinha. Cindy lá estava, olhando em volta, perplexa. 

― Cindy! ― chamou Morrison, angustiado. ― Cindy, eles... 

― Ela não pode ouvi-lo nem vê-lo ― disse Donati. ― No outro lado, o vidro é um espelho. Bem, vamos acabar com isto. Foi realmente um pequenino deslize. Creio que trinta segundos serão o suficiente. Junk?  

Junk apertou o botão com uma das mãos e manteve o cano da arma comprimido de encontro às costas de Morrison com a outra.  
Foram os trinta segundos mais longos da vida de Morrison. 

Quando o tempo terminou, Donati pousou a mão no ombro de Morrison e disse: 

― Quer vomitar? 

― Não ― replicou Morrison com voz sumida, a testa encostada no vidro e as pernas bambas como geléia. ― Acho que não. 

Virou-se e percebeu que Junk se fora da sala. 

― Venha comigo ― disse Donati. 

― Aonde? ― indagou Mornson, apático.

― Creio que o senhor tem algumas explicações a dar, não acha? 

― Como posso encará-la? Como posso dizer-lhe que eu... eu... 

― Creio que o senhor ficará surpreso ― atalhou Donati. 

A sala estava vazia, a exceção de um sofá. Cindy, sentada nele, soluçava incontrolavelmente. 

― Cindy? ― chamou Morrison, baixinho. 

Ela ergueu a cabeça, os olhos aumentados pelas lágrimas. 

― Dick? ... Oh... Oh, meu Deus... 

Morrison estreitou-a nos braços. 

― Dois homens ― disse ela de encontro ao peito dele. ― Lá em casa. A princípio, julguei que fossem assaltantes, depois pensei que fossem violentar-me. Mas levaram-me para algum lugar, com uma venda nos olhos e... e... oh, foi horrível.  

― Shhhhh ― disse Morrison. ― Shhhhhh. 

― Mas por quê? ― quis saber ela, erguendo a cabeça para encará-lo. ― Por que eles... 

― Por minha causa ― respondeu Morrison.
― Preciso contar-lhe uma estória, Cindy... 

Quando Morrison terminou, calou-se por um momento e, em seguida, acrescentou: 

― Suponho que tenha raiva de mim. Não a censuro por isso. 
Morrison fitava o chão e Cindy pegou-lhe o rosto com ambas as mãos, virando o para si. 

― Não ― disse ela.

― Não tenho raiva de você. 

Morrison olhou-a, mudo de espanto. 

― Valeu a pena ― prosseguiu Cindy.

― Deus abençoe essa gente. Eles libertaram você de uma prisão.  ― Está falando sério? 

― Estou ― disse ela, beijando-o.

― Podemos voltar para casa, agora? Sinto-me muito melhor. Muito, mesmo. 
O telefone tocou uma semana mais tarde e, ao reconhecer a voz de Donati, 
Morrison disse:

― Seus rapazes estão enganados. Nem cheguei perto de cigarros. 

― Sabem disso. Temos um assunto final a tratar. Pode passar por aqui amanhã à tarde? 

― Será que... 

― Não, não é nada grave. Contabilidade, com efeito. A propósito, parabéns por sua promoção. 

― Como descobriu isso? 

― Mantemo-nos informados a seu respeito ― disse. Donati em tom neutro, desligando. 

Quando entraram na salinha, Donati disse: 

― Não fique tão nervoso. Ninguém vai mordê-lo Venha até aqui, por favor. 

Morrison viu uma balança comum, do tipo de banheiro. 

― Escute, ganhei um pouco de peso, mas... 

― Claro, setenta e três por cento de nossos clientes ganham um pouco de peso. Suba na balança, por favor. 

Morrison obedeceu e a balança marcou oitenta e sete quilos. 

― Muito bem, ótimo. Pode descer. Qual é a sua altura, Sr. Morrison? 

― Um metro e oitenta. 

― Muito bem, vejamos... ― Donati tirou do bolso um cartão plastificado

― Ora, não está mau. Vou dar-lhe a receita de umas pílulas para regime, altamente ilegais. Use-as com parcimônia e de acordo com as instruções. E vou estabelecer seu peso máximo em... vejamos...

― tomou a consultar o cartão. ― Que acha de oitenta e dois quilos? E já que estamos em primeiro de dezembro, aguardarei o senhor no primeiro dia de cada mês, para tomarmos seu peso. Não haverá problema se o senhor não puder comparecer. Basta telefonar com antecedência.  

― E o que acontecerá se eu pesar mais que oitenta e dois quilos? 

Donati sorriu: 

― Enviaremos alguém à sua casa para amputar o dedo mínimo da mão de sua esposa. Pode sair por aquela porta, Sr. Morrison. Tenha um bom dia. 
Oito meses mais tarde: 

Morrison encontra-se com o amigo dos Estúdios Larkin no bar de Jack Dempsey. 
Morrison está no peso que Cindy chama orgulhosamente de seu "peso de lutar": setenta e cinco quilos e meio. Faz ginástica três vezes por semana e está em plena forma.
Em comparação, o amigo dos Estúdios Larkin parece algo saído da boca de um cachorro.  

― Amigo: Meu Deus, como você conseguiu largar o fumo? Estou praticamente algemado ao vício. O amigo apaga o cigarro com genuína repulsa e toma o uísque de umasó vez.  

Morrison fita-o especulativamente e, então, tira do bolso a carteira, extraindo dela um cartão de visitas. Coloca o cartão em cima do bar. E diz: Sabe, esses caras mudaram a minha vida.  

Um ano mais tarde: 

Morrison recebe pelo correio uma conta que diz: 

EX-FUMANTES LTDA. 
Rua 46 Leste n° 237 
Nova York, N.Y. 10017  1 Tratamento $ 2.500,00 
Conselheiro (Victor Donati) $ 2.500,00 
Eletricidade $ 0,50 
TOTAL (Favor pagar esta importância) $ 5.000,50 

― Aqueles filhos da puta! ― explode Morrison. ― Cobram-me a eletricidade que usaram para... para... 

― Pague logo, diz Cindy, beijando-o. 
Vinte meses mais tarde: 

Por mero acaso, Morrison e a esposa encontram o casal McCann no Teatro Helen Hayes. Fazem-se as devidas apresentações de praxe. Jimmy parece tão bem, senão ainda melhor, como naquele dia no terminal do aeroporto, há tanto tempo. Morrison ainda não conhece a esposa dele. É bonita daquela maneira radiante que certas moças feias assumem o quanto estão muito, muito felizes.  
Ela estende a mão e Morrison a aperta. Há algo esquisito no modo como ela aperta a mão. Só durante o segundo ato da peça Morrison dá-se conta do que é: ela não tem o dedo mínimo da mão direita.  



* * * FIM * * *

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Bruno Kaoss

Um apaixonado por todas as formas de expressões artísticas, em especial a Música. QUESTIONADOR... Adoro divulgar informações e promover debates sobre questões sociais, econômicas, políticas, ambientais e culturais.

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